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A Onda

domingo, 15 de outubro de 2017

Uma manhã qualquer, de um dia qualquer. Caminhava em modo automático pelas ruas. A pressa não a consumia. Nada a angustiava. Mas seu ‘eu’ estagnava-se, tal como os carros estacionados na esquina. Caminhava. Apenas estava ali: existindo como existe a partícula mais ínfima do universo. Nada extraordinário. Meramente dias ordinários.  

Porém, em meio aos passos mecânicos que dava, topou com um espelho caído no chão. Objeto curioso aquele. Pouco ornamentado e sem grandes atrativos. E embora nada de mais houvesse ali, havia algo no ordinário objeto que a atraia. 

Num impulso magnético, sem hesitar, pegou-o do chão e o fitou. 

O que havia por trás daquele ato? Nada. Era só um espelho, feito para refletir imagens e assim deveria ser. Mas ao encarar a si mesma através do objeto, sua consciência subitamente caiu em si. Chocou-se diante de sua própria existência. Absurdamente indagou-se. Eram tantas questões que não cabiam mais em seu microcosmo. Transbordava. E de tanto transbordar: escorria por todo o seu corpo. Perpassava-lhe os poros. 

‘Mas quem é essa que eu encaro? O que de fato sua história representa? Seria uma estranha? Quem é? Diga-me quem é você... Eu necessito saber... Talvez eu ainda não a conheça. ’

E quanto mais mergulhava para dentro do seu ‘eu’ espelhado, mais tinha a urgência de saber.
Suas pulsações aceleravam-se. Algo molhado lhe escorria as têmporas. Angústias espirais a percorriam. 

‘Quem é?’
‘Diga-me quem é você... ’
‘saber... ’
‘necessito... ’ 
‘ainda não... ’
‘talvez... ’
‘talvez... ’
‘eu?’ 

E seus questionamentos lhe faziam eco. Eram agudos. Agudeza da própria existência. Tinha fome de si mesma. Queria devorar-se. Talvez porque nunca antes tenha tido a audácia de empreender tal mergulho. O mergulho profundo para dentro de si. Percorrendo águas mornas e glaciais. Entre a dor e o prazer. 

Racional. Erótica. Emocional. Profunda. Torturante. Obscura. 
(‘talvez eu ainda não a conheça... ’)

Catártica!

Antes que pudesse se afogar, voltou sua cabeça para a superfície. Num sopro de respiração, seus pulmões dilataram-se. Esparramou-se para tudo quanto é lado. 

E quando se perguntava a si mesma seu próprio nome repetia: ‘eu sou a Onda’. 

Eu sou a Onda que se movimenta num vem e vai incessante. Forte e vigorosa. Revolta e calma. Eu sou a Onda que inspira e expira. As fases lunares me guiam. Eu sou a Onda que às vezes se perde, mas volta a se encontrar. Eu me mergulho. Tudo é movimento. Tudo é movimento...

Eu sou a Onda.


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